Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Hitchcockiana - O Globo e Bom Dia (27/11/2011)


Ele gritou: — “Janela indiscreta”! Ela: — O quê?

— O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão daqui.

Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.

Ele:

— Adoro o Hitchcock.

Ela: 

— Eu também.

Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.

— Qual é o seu Hitchcock favorito?

— Estou vendo “Janela indiscreta” pela décima vez. Mas acho que meu favorito é “Um corpo que cai”. O seu?

— “Os pássaros.”

Ela fez uma cara feia.

Dias depois se encontraram na loja de vídeos.

— Olha o que eu achei — disse ele.

Era “Notorius”. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. “Os pássaros.” Ia rever para ver se desta vez gostava.

— Você não precisa gostar só porque eu gosto.

-— É por boa vizinhança — disse ela, rindo.

Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o “Notorius” tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de “Os pássaros”?

— Sei não... — disse ela.

— Vamos ter que vê-lo juntos.

Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. “Os pássaros”, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se...

Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.

Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock.

Às vezes discutiam, “‘Topázio’ é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”

Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (“Sabotagem”, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar de a loira dizer que seu filme favorito era “Ghost”.

Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”), mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em “Disque M para matar”.

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