Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Aquela aurora - Crônica do Estadão e do Bom Dia (31/03/11)

Em São Paulo acabam de fundar um partido que se declara nem de esquerda, nem de direita nem de centro. Um partido de nada, a favor de tudo, ou exclusivamente a favor de si mesmo. Tudo bem. "Esquerda" e "direita" são termos obsoletos e "centro" hoje é sinônimo de PMDB, ou de uma névoa ideológica. O novo partido paulista não vem preencher um vácuo, vem institucionalizar o vácuo. Seu nome evoca o passado, quando o Getúlio, para não dizerem que o Brasil não era uma democracia, inventou dois partidos opostos, o PTB e o PSD. Justiça seja feita: o novo partido surge representando nada, mas com saudade de um tempo em que as siglas, mesmo falsas, significavam alguma coisa. 

Bom mesmo era o século 19, quando tudo isso começou. Como no texto do Paulo Mendes Campos que fala das primeiras horas do Gênese, com "o mundo ainda úmido da criação", se poderia descrever com o mesmo encanto aquele outro início. Quando a História, por assim dizer, entrou na história e tudo recebia seus nomes verdadeiros. Uma segunda Criação. Hegel ainda quente, Marx lançando suas ideias explosivas como granadas, o passado e o futuro sendo redefinidos com rigor científico e a modernidade tecnológica e modernidade social (ou, simplificando, a máquina a vapor e a nova consciência proletária) prestes a se fundir para transformar o mundo. "Bliss it was in that dawn to be alive", êxtase era estar vivo naquela aurora, escreveu o poeta Wordsworth sobre a Revolução Francesa. A esquerda poderia dizer o mesmo do século 19. Naquela aurora não havia dúvida sobre a inevitabilidade histórica do socialismo.

Mas êxtase também espera a direita numa volta idílica ao século 19. Foi o século de reação à Revolução, da restauração conservadora na Europa depois do terremoto republicano e do nascente capitalismo industrial sem remorso. Os que hoje propõem a "flexibilização" dos direitos dos trabalhadores conquistados em anos de luta (como os que os ingleses defendiam nas ruas de Londres, há dias) babariam com o que veriam no velho século: homens, mulheres e crianças trabalhando 15 horas por dia, sem qualquer amparo, e sem qualquer encargo legal ou moral, fora os magros salários, para seus empregadores. A perfeição. Antes que a pregação socialista a estragasse.

Século 19, terra de sonhos. Tanto para a esquerda quanto para a direita, antes que tudo virasse um mingau só.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Don Juan e a Morte - Crônica do Estadão (27/03/11)

Quando a mulher revelou que era a Morte e que viera buscá-lo, Don Juan não pulou da cama nem tentou fugir. Apenas sorriu e disse:

- Eu deveria ter desconfiado.

- Por quê? - perguntou a Morte.

- Porque nenhuma mulher tão linda se entregaria a mim tão facilmente, se não fosse uma armadilha.

- Mas você não é um sedutor famoso? Um homem irresistível?

- Sim, mas na minha experiência, quanto mais linda a mulher, mais difícil a sedução. E com você não precisei usar nenhum dos meus truques. Nem meu olhar de desatar espartilhos, nem os versos que orvalham o portal do amor antes mesmo do meu primeiro toque... Você é a mulher mais bonita que já conheci, mas bastou dizer "vem" e você veio. Eu deveria ter desconfiado.

- Eu talvez tenha me precipitado, ao ceder tão facilmente. Gostaria de ouvir seus versos, que também são famosos. Se eu tivesse resistido um pouco mais...

- Pois é. Agora é tarde.

- O que você diria da minha beleza, se fosse obrigado a recorrer à poesia para me trazer pra cama?

- Bem. Assim, de improviso... Ainda mais depois de saber da minha morte iminente...

- Tente.

- Eu começaria elogiando o seu porte heráldico. Compararia a brancura da sua pele às primeiras neves, quando os cristais ainda reluzem, e o rego dos seus seios ao estreito de Gibraltar, onde dois continentes portentosos se roçam. Comentaria as estrias roxas do seu cabelo e... e...

- Que foi? Por que parou?

- Acabo de me dar conta. Está explicado por que nos amamos em todas as posições possíveis, inclusive algumas que eu mesmo inventei, sem que eu ouvisse um "ui" da sua boca. Um mísero "ui". Você se manteve fria o tempo todo. Claro! Onde se viu a Morte gozar?

- Desculpe, eu...

- Não se desculpe. Você não vê? Isso redime a minha masculinidade. Pensei que tivesse perdido meu jeito de satisfazer as mulheres, que nunca tinha falhado antes. Mas não era eu. Era você. Você só estava aqui a serviço, não para se divertir.

- Não deixou de ser agradável. 

- Obrigado, mas não precisa mentir. Vou morrer feliz, sabendo que não falhei. E o irônico é que passei a vida inteira seduzindo mulheres para adiar a velhice, enganar o tempo e protelar a morte, e ela, a morte, você, me aparece assim. Na forma da mulher mais bonita que já conheci. Olhos como lagos fosforescentes, pescoço como a coluna de mármore de Amastar, onde peregrinos encostavam a testa para rejuvenescer; tornozelos como...

- Não quero interromper, mas acho que deveríamos partir.

- Certo, certo. E se a gente desse mais uma, rapidinha, só para eu me lembrar depois? Ouvi dizer que, no céu, o canto coral substitui o sexo e no inferno é só com um cabrito.

- Não é uma boa ideia. Vamos?

- (Suspiro) Vamos.

Rio de Janeiro recebe a EXPOTCHÊ de 1 a 10 de abril no Riocentro

A EXPOTCHÊ, maior feira varejista de produtos típicos e difusão da cultura gaúcha realizada fora do Rio Grande do Sul, chega pela primeira vez ao Rio de Janeiro. Promovida em Brasília há 19 anos, com público de 200 mil visitantes a cada edição, a mostra ocupa nesta nova empreitada o amplo espaço do Riocentro, na Barra da Tijuca. Do dia 1º a 10 de abril, 270 expositores participam da versão carioca do evento, cujo tema é “Uma Feira Gaúcha que veio com tudo, inclusive o frio”.
Em sua longa e bem-sucedida trajetória, a EXPOTCHÊ acumula premiações. Já conquistou o Top of Mind em 2006, 2007 e 2009 (maior feira do gênero) e o Prêmio Caio em 2005, 2006, 2007 e 2010 (melhor feira regional do país). Além dos gaúchos que moram na Cidade Maravilhosa, espera-se a presença de visitantes cariocas. O Rio tem uma comprovada história de amor com o Sul: é o segundo maior emissor de turistas para a região, perdendo apenas para São Paulo.
A estimativa da Rome Feiras e Promoções, responsável pelo evento, é de que aproximadamente cem mil pessoas compareçam à edição carioca da mostra, que contou com um investimento de R$ 2,5 milhões. No ano passado, em Brasília, foram movimentados cerca de R$ 15 milhões.
A ideia dos organizadores da EXPOTCHÊ é surpreender o público logo na entrada. Um cenário com neve será montado, remetendo às baixas temperaturas, um dos principais atrativos para turistas em visita à Região Sul.
 A feira reúne ainda representantes de vários municípios que integram o roteiro turístico do estado, com cenários temáticos da arquitetura e da cultura locais, além de outras peculiaridades representadas por intermédio de artesanato, gastronomia e produtos típicos que serão vendidos nos dez dias de realização da feira. Haverá também praças especialmente montadas para receber os amantes da boa mesa, nas quais haverá degustação de vinhos, pães, cucas, queijos, salames, licores e outras delícias da produção colonial.

Mais um destaque da feira é a música. Entre as atrações estão a banda Nenhum de Nós, a dupla Kleiton & Kledir, o músico/escritor Luis Fernando Veríssimo - e sua banda Jazz 6 - e Chimarruts. Além disso, o Grupo Folclórico de Novo Hamburgo se apresenta diariamente. Os shows na EXPOTCHÊ acontecem a partir das 21h. A programação completa está disponível no site www.expotche.com.br.

Fonte: Jornal O Fluminense

A última - Crônica dos jornais Bom Dia e O Globo (27/03/11)

"Um lugar ao sol" é um filme dirigido por George Stevens, baseado num romance de TheodoreDreiser chamado "Uma tragédia americana".

Jovem pobre (Montgomery Clift) recebe proposta de tio rico para trabalhar na sua empresa, começando por baixo. No trabalho ele conhece moça pobre (Shelley Winters) e os dois iniciam um namoro.

Convidado para uma festa na casa do tio rico o moço se sente deslocado entre os grã-finos, sem ter com quem falar. Até que atrai a atenção de outra convidada na festa, que se aproxima dele. E então a Elizabeth Taylor entra na sua vida.

O filme de Stevens, lançado em 1951, é em preto e branco. Não destaca os pontos mais comentados da beleza da atriz, então com seus 20 anos se não me falha a matemática: os faiscantes olhos violetas. Mas não há outro caso — com exceção, talvez, da primeira visão de Rita Hayworth em "Gilda" — de uma entrada em cena como a dela, na história do cinema.

No momento em que a vê, o pobre moço está perdido. Literalmente, pois a história deles começará como romance — e raramente o cinema foi tão romântico como na descrição do amor dos dois, que incluirá um longo beijo filmado por Stevens como uma espécie de suma da paixão arrebatadora, e isso que beijo de língua era desconhecido na época — e terminará em tragédia, com a execução do personagem de Clift, por assassinato.

Pois quando tudo parece encaminhá-lo para um mundo perfeito, o casamento com uma menina rica que, além de tudo, é a Elizabeth Taylor, a Shelley Winters lhe diz que está grávida e que ele precisa casar com ela. E ele a mata. No livro de Dreiser, mata mesmo. No filme fica a dúvida: talvez tenha sido um acidente. Mas ele é executado.

Outra diferença entre o livro e o filme é que este atenua a critica social do livro.

Dreiser escreveu sobre a desigualdade e a angústia da ascensão social como causas da tragédia americana. No filme, sensatamente, a ameaça de perder uma mulher como Elizabeth Taylor basta como motivação para o crime. Pois de Elizabeth Taylor se pode dizer que foi a ultima beleza de Hollywood que justificaria qualquer coisa.

sábado, 26 de março de 2011

Romances: A Décima Segunda Noite (Objetiva, 2007)

Mais uma participação em uma série, desta vez uma trilogia de livros que relê de maneira contemporânea comédias de Shakespeare. Inspirando-se em Noite de Reis, do bardo inglês, Verissimo cruza em volta de um salão de beleza em Paris uma trama de casais trocados, disfarces, falsas identidades pessoais e sexuais e um narrador do Reino Animal: um papagaio que por influência de seu antigo dono, um intelectual exilado, abusa das citações eruditas.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O porrete - Crônica do Estadão e do Bom Dia (24/03/11)

"Fale suavemente mas carregue um porrete" era a receita do presidente (1901 a 1909) americano Theodore Roosevelt para o sucesso na política externa. Barack Obama fala suavemente, como se viu na sua visita recente ao Brasil, mas não descartou o porrete como arma política que herdou dos seus antecessores, apesar de tê-lo criticado para se eleger. Tudo se repete na Líbia, a começar pela hipocrisia da indignação seletiva: alguns tiranos antes tolerados, quando não abertamente apoiados como o Saddam, passam a ser inaceitáveis e atacáveis enquanto o porrete poupa outros, que ainda servem. Depois virão as baixas civis denunciadas por um lado e negadas pelo outro, as fotos de crianças mutiladas, as discussões sobre a eficiência ou não dos ataques aéreos "cirúrgicos", etc. E teremos mais um exemplo dessa contribuição moderna às táticas de guerra, a estranha doutrina do bombardeio humanitário.

Teses chocantes. Cristopher Hitchens e Alexander Cockburn se alternavam numa página da revista americana The Nation, uma semana um, uma semana outro. Até que Hitchens surpreendeu leitores e editores da Nation com sua posição a favor da intervenção americana no Iraque, uma posição que até hoje ele é obrigado a defender da perplexidade geral quando se apresenta em público. A revista não o demitiu mas Hitchens acabou pedindo para sair. Ficou Cockburn, que continua, apesar de também destoar da linha da revista, no seu caso sendo às vezes até mais radicalmente esquerdista do que ela. Mas Cockburn também teve seu momento Hitchens, expondo uma opinião inesperada que chocou todo o mundo. Sua tese é que toda a questão ambiental, do aquecimento global e dos males do combustível fóssil é na verdade uma campanha da indústria nuclear, que quer nos assustar para monopolizar o fornecimento de energia no planeta. Segundo Cockburn o mundo não está esquentando, os polos não estão derretendo, os rios não estão morrendo, há petróleo de sobra para mais alguns milhares de anos e quando o petróleo acabar teremos o etanol e outras fontes naturais renováveis. E o vento. E a energia solar. 

Cockburn é um jornalista respeitado. Suas posições progressistas o credenciam para os leitores da Nation que, no entanto, na sua provável totalidade, não têm dúvida sobre os estragos da poluição ambiental negados por Cockburn. É previsível que as cartas de leitores incrédulos atacando Cockburn diminuam depois das notícias do desastre ecológico na usina nuclear de Fukushima, mas ele não vai conseguir convencer muita gente. E será interessante ver o que Cockburn escreverá sobre Ann Coultern, a boneca loira do reacionarismo americano, que há dias propôs na TV outra tese chocante, a de que a radioatividade faz bem às pessoas.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Começa amanhã em SP segunda edição do Risadaria


Começa amanhã no Parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, a segunda edição do Risadaria, festival de humor que Paulo Bonfá, idealizador do projeto, luta para emplacar no calendário nacional. E se dependesse apenas de sua expectativa, já teria emplacado. "No ano passado, recebemos cerca de 23 mil pessoas. A estimativa para este ano é de 50 mil. E tenho certeza de que vamos chegar lá. A forma é bonita e o conteúdo é engraçado", disse o humorista, referindo-se à decoração do Pavilhão da Bienal, que abrigará o evento, e à reunião no local das mais diferentes formas de humor.
Bonfá afirmou que quem for conferir o Risadaria vai se divertir, mesmo o público que já participou da primeira edição, em março do ano passado. "Além das mesmas plataformas - TV, rádio, internet, cinema e humor gráfico - com acervos diferentes, com coisas inéditas, haverá quatro novas áreas de conteúdo, duas delas sugeridas por pessoas que estiveram no festival em 2010."
A primeira sugestão partiu de fotógrafos, que sentiram falta de "fotografias engraçadas" no evento. Então, em parceria com a Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Estado de São Paulo (Arfoc-SP), a curadoria do festival selecionou para este ano 16 fotografias de humor que, ampliadas, vão ganhar destaque. A outra sugestão veio de Newton Cannito, ex-secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura. Ele manifestou o desejo de assistir a documentários bem-humorados. "Vamos ter o RisaDoc: exibição de documentários de humor em curta e média metragem", disse Bonfá.
Além disso, haverá uma área destinada à literatura - a Humorteca -, com mais de 200 títulos de humor. "Teremos um lounge no local para as pessoas poderem ler e descansar, já que a ideia é que o público passe o dia inteiro lá." Por fim, em uma conversa com Marcelo Tas, surgiu a ideia de chamar grafiteiros para completar o cenário. Sob curadoria de Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos como Osgemeos, dez grafiteiros foram selecionados para mostrar seus trabalhos.

Homenagem
O homenageado desta segunda edição será Jô Soares. A escolha se deu, segundo Bonfá, porque o "Jô é um artista multimídia, multitalentoso, que tem tudo a ver com o Risadaria, que também transita por diversos meios." Estarão em exposição itens pessoais e fotos da carreira de Jô Soares e dos bastidores de seus programas. "E sabe aquelas pessoas que estudam borboletas e colam elas num quadro? Nós vamos fazer isso com as gravatas-borboleta do Jô."
O festival de humor vai contar ainda com um tributo ao nariz. Sob curadoria do cartunista do jornal Folha de S. Paulo Caco Galhardo, dez artistas criaram desenhos que têm o nariz como personagem principal. Além disso, haverá a exposição dos principais trabalhos da carreira de dois nomes do humor gráfico: o escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo e Reinaldo, do Casseta & Planeta. Entre as atrações internacionais, destaque para Michael Winslow, que faz as "mil vozes" do clássico "Loucademia de Polícia".

Serviço
Risadaria - Muito Além da Piada. Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n.º. De quinta-feira (24) a sábado (26), das 10 às 22 horas, e domingo (27), das 10 às 21 horas. Ingressos: de R$ 30 a R$ 100. Programação completa no site www.risadaria.com.br.

A aliança

   Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.
  Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.
  — Você não sabe o que me aconteceu!
  — O quê?
  — Uma coisa incrível.
  — O quê?
  — Contando ninguém acredita.
  — Conta!
  — Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?
  — Não.
  — Olhe.
  E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.
  — O que aconteceu?
  E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.
  — Que coisa - diria a mulher, calmamente.
  — Não é difícil de acreditar?
  — Não. É perfeitamente possível.
  — Pois é. Eu...
  — SEU CRETINO!
  — Meu bem...
  — Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.
  — Mas, meu bem...
 — Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!
  E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:
  — Que fim levou a sua aliança? E ele disse:
  — Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.
  Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.
  — O mais importante é que você não mentiu pra mim.
  E foi tratar do jantar.

domingo, 20 de março de 2011

O ubíquo Mr. Summers - Crônica do Bom Dia (20/03/11)

"Ubíquo. Adj. Que está em toda parte.” Exemplo: Lawrence Summers. Mr. Summers conseguiu até ser personagem de dois dos filmes que concorreram ao Oscar, este ano. Num, “Rede social”, ele aparecia como presidente da Universidade de Harvard, interpretado por um ator. Ou era ele mesmo? Não duvido. No outro, “Trabalho interno”, ele era um membro da gangue responsável pela desregulamentação do sistema financeiro e pelos favores a Wall Street que deram nos escândalos dos derivativos e das hipotecas podres, e na crise das finanças internacionais. Neste, era certamente ele mesmo. Acho que não há outro caso na história dos oscares de uma coincidência parecida de vilões.

No filme “Rede social”, se me lembro bem, Summers dá alguns conselhos cínicos aos estudantes que se queixam da apropriação de suas ideias por outros alunos, dizendo que o roubo de ideias é apenas uma prova do espírito empreendedor cultivado em Harvard. No documentário “Trabalho interno” ele é um dos principais exemplos da culpa de economistas e conselheiros econômicos na meleca toda.
Quando era secretário do Tesouro do governo Clinton, Summers escreveu um memorando que ficou famoso, recomendando que indústrias poluidoras fossem transferidas para países subdesenvolvidos, onde os trabalhadores eram pobres e portanto o custo social seria menor. Citava a África como uma área sub-habitada e, na opinião dele, sub-poluída. Summers depois disse que o memorando era uma brincadeira. 

Também alegou ter sido mal entendido quando num discurso, já como presidente da Harvard, atribuiu a falta de nomes femininos de destaque nas pesquisas científicas a uma inferioridade mental da mulher. Foi uma das razões para correrem com ele da universidade.

Apesar dos maus conselhos e das gafes, Summers não perdeu seu prestígio. E, depois de ser um símbolo da política econômica comprometida com os vigaristas de Wall Street, tornou-se um símbolo, mais triste, de desilusão com o Barack Obama, que durante a campanha tinha prometido acabar com a farra dos bancos desregulados e a submissão dos políticos aos interesses dos “gatos gordos” do sistema financeiro, e quando tomou posse convidou para liderar a sua equipe econômica — Larry Summers!

Summers não está mais com o Obama. Mas depois da decepção inicial o Baraca não recuperou as esperanças despertadas com sua retórica eleitoral e hoje é atacado pela esquerda, como um enganador, tanto quanto pela direita, que o chama de demônio socialista e coisa pior. As esperanças da esquerda — que incluíam a retirada imediata do Iraque e do Afeganistão, além de um plano de saúde social revolucionário e ferro em Wall Street — eram irrealistas. Obama é apenas humano. Mas o convite ao ubíquo Mr. Summers, depois de tudo que se sabia dele, foi um pouco demais.

Bebel três vezes - Crônica do Estadão (20/03/11)

A Bebel era um problema. Aos 18 anos tinha participado pela primeira vez de uma reunião da holding da família. Herdara ações do avô, um dos fundadores da empresa que depois se transformara num conglomerado, e com elas o direito de votar em todas as decisões da diretoria. Naquela primeira reunião ela fora saudada carinhosamente pelo patriarca da família e presidente do conglomerado, seu tio-avô.

- A partir de hoje, a Bebelzinha vai participar das nossas reuniões. Você quer dizer alguma coisa, querida?

E a Bebel dissera o seguinte:

- Toda propriedade é um roubo.

 
***

Grande consternação familiar. Sorrisos incrédulos. Troca de olhares atônitos. O que aquela menina estava lendo? Com quem andava? O que era aquilo? O patriarca, depois de se recuperar de um acesso de tosse causado pelo choque, perguntou se ela tinha alguma sugestão sobre como administrar as empresas do grupo de acordo com sua premissa. Bebel passou então a expor um plano que incluía entregar a gestão das empresas aos empregados e concluiu instando todos ali a se engajarem na luta do proletariado contra o capital espoliador. Nas reuniões seguintes o patriarca cuidou para jamais dar a palavra à Bebel mesmo quando ela subia na mesa, sapateava e exigia ser ouvida. Mas não foram poucas as vezes em que os votos da Bebel atrapalharam, ou pelo menos retardaram, decisões importantes do grupo, com a consequente perda de dinheiro. Se dependesse dela, Bebel solaparia o capitalismo por dentro. 

***

Mas um dia a Bebel anunciou que tinha se casado e exigiu que o marido, Valfredo, participasse das reuniões ao seu lado, para orientá-la e expor algumas das suas ideias sobre estratégia empresarial. O marido tinha "Pilantra" tatuado na testa, ou só faltava isto. Quando perguntavam qual era sua atividade principal, respondia "Transações". Às vezes em inglês: "Transitions". Bebel, apaixonada, fazia tudo que ele mandava. Convertera-se ao capitalismo mais desenfreado, para ganhar mais e poder oferecer a Valfredo os meios para manter o que ele chamava de "meu padrão de vida", ou "my padron of life". Valfredo conturbou várias reuniões da holding até que um dia desapareceu misteriosamente, havendo a certeza generalizada - mas nunca dita - que o patriarca o convencera a abandonar a mulher e se exilar no exterior por uma boa quantia. Bebel, inconsolável, perdeu o interesse pelas atividades do grupo e passou a votar passivamente com a maioria. Não era mais um problema. Até que...

***

Até que na última reunião Bebel anunciou que trazia uma mensagem da sua seita, a Igreja Circular da Renúncia e Regeneração em Cristo, que começara a frequentar e à qual já tinha doado tudo que possuía, inclusive sua casa - e suas ações. O patriarca, depois de se engasgar e tomar um copo d"água, finalmente conseguiu falar e disse:

- O quê?! 

Sim, a Igreja Circular da Renúncia e Regeneração em Cristo agora era dona de uma parte do conglomerado. E mais, Bebel prometera ao pastor que convenceria todos os membros da diretoria a também doarem suas ações à Igreja. Era esta sua mensagem. Todos deveriam abraçar a renúncia, desprenderem-se de suas posses materiais e buscarem a regeneração em Cristo, como ela fizera. A Igreja os purificaria, ficando com tudo que era deles, começando pelas ações com direito a voto. E Bebel pediu para que todos se dessem as mãos em volta da mesa de reuniões e repetissem com ela: "Glória a Jesus! Glória a Jesus!". 

O patriarca precisou ser socorrido.

sábado, 19 de março de 2011

Romances: O Opositor (Objetiva, 2002)

Outra participação em uma série temática, desta vez dedicada aos dedos da mão. Encarregado do polegar, Veríssimo cria mais uma vez uma paródia de trama de suspense e conspiração nonsense. O inusitado é o cenário: a Amazônia. Em um bar de Manaus, um jovem jornalista encontra Polaco, um bêbado gigantesco que lhe narra suas aventuras como Opositor, ou Apagador a serviço de uma misteriosa corporação que decide os destinos do mundo, formada por menos de duas dezenas de indivíduos que controlam a maior parte da riqueza mundial. Enredado pelas histórias do imenso bêbado, o jornalista se vê envolvido em um acontecimentos que parecem dar razão ao misterioso personagem.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Chineses (I)

   Você já pensou, seriamente, nos chineses? No tempo que levou para escrever esta frase, nasceram dezessete chineses. Até o fim desta crônica nascerão mais mil. Quando você chegar no fim do jornal, serão cinquenta mil chineses novos no mundo, esperneando e exigindo leite. E não há nada que você possa fazer a respeito. (Ler o jornal mais ligeiro não adianta.) Pense nas consequências. Os problemas de fron­teira entre a China e a União Soviética aumentarão, pois bastará um chinês respirar mais fundo e a China invade a Mongólia. Os hindus também estão se re­produzindo geometricamente — isto é, em escala geométrica, o método ainda é o mesmo de sempre — mas na índia, pelo menos, o governo se esforça para conter o pessoal. Na China a procriação é estimulada. Vamo lá! Vamo lá! Quando o velho disse que todo o poder sai da ponta de um fuzil ele estava sendo mais metafórico do que de costume. A China não vai precisar da bomba para derrotar o Ocidente. Eles vão nos ganhar no empurrão. Quando, no Pentágono, se derem conta da coisa e correrem para disparar os foguetes, será tarde demais. Haverá uma comunidade chinesa acampada na Sala de Guerra, no caminho do botão. Eles vão nos derrubar no calço!
   Pense nas consequências. O mundo cheio de chineses. Toca o despertador na casa de uma típica família classe média em algum subúrbio do Oci­dente.
   — Querida...
   — Sim?
   — Pede para o chinês do teu lado desligar o despertador. Está na hora de levantar. .. Com licença, com licença. . .
   Mais tarde:
   — Olha, os chineses do chuveiro estão começando a reclamar.
   — O que foi?
   — Dizem que um banho por dia por pessoa da família é demais. Eles estão se molhando quatro vezes por dia, não conseguem secar a roupa. . . Onde estão as minhas calças?
   — No guarda-roupa, atrás do chinês da esquerda.
   — O baixinho?
   — Não, o outro. O baixinho nós botamos no armário das crianças, você não se lembra?
   — E os meus sapatos?
   — Embaixo da cama.
   — Deixa ver. Ah! Te peguei! Adúltera!
   — Como?
   — Há um homem estranho embaixo da cama!
   — São os quatro chineses de sempre...
   — Hoje são cinco. E um não é chinês!
   Em outras chinês palavras chinês os chineses estarão por toda a chinês parte chinês chinês chinês. Você chinês chinês não chinês poderá chinês dar um passo chinês chinês sem esbarrar num chinês chinês chinês chinês esbarrando em outro chinês chinês chinês chinês ou num hindu.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Luís Fernando Veríssimo será atração no Press Award 2011 na Flórida

O escritor gaúcho será o 1º convidado do projeto “Minha Pátria, Minha Língua”, criado para promover o idioma português e a literatura brasileira no exterior

Desde já antecipado como uma das grandes atrações tanto do Focus-Brazil quanto do PressAward 2011, de 13 a 16 de abril no Broward Center, em Fort Lauderdale (FL), o cronista e romancista gaúcho Luís Fernando Veríssimo será o primeiro convidado do projeto “Minha Pátria, Minha Língua”, criado pelos jornalistas Roberto Lima e Carlos Borges para promover o idioma português e a literatura brasileira no exterior.
Luís Fernando Veríssimo falará de literatura no dia 13 no Focus-Brazil, a partir das 11 da manhã na sala Abdo New River do Broward Center e no dia seguinte (14) participará de uma noite de autógrafos promovida pelo Centro Cultural Brasil-USA  de seu mais recente lançamento, “Os Espiões”, a partir das 8 da noite na “Ornare”, no Miami Design District.
O escritor, que por duas fases em sua vida viveu nos Estados Unidos, será homenageado em 16 de abril, durante a cerimônia de premiação de Arte & Cultura do  Brazilian InternationalPress Award, com o “Lifetime Achievement Award”, juntando-se aos 3 premiados anteriormente nessa categoria: Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro e Ana Maria Machado.
Na entrevista abaixo, Luís Fernando Veríssimo fala de sua iniciação profissional, dos tempos em que morou nos Estados Unidos e o significado da premiação que receberá.

• O senhor viveu parte de sua infância e adolescência nos Estados Unidos, com a família? Conte-nos como foi esta experiência?
• Luís Fernando Veríssimo: Vivi dos 7 aos 9 anos na Califórnia, entre San Francisco e Los Angeles, e dos 16 aos 20 em Washington - DC. No primeiro período, de 43 a 45, peguei a Segunda Guerra Mundial, que terminou quando estávamos voltando para o Brasil. No segundo peguei a Guerra Fria, o MacCartismo, o começo da desegregação nas escolas, o ElvisPresley e o nascimento do rock. Foram duas boas experiências que influíram muito na minha vida e nos meus gostos.  

• Filho de um escritor consagrado como Érico Veríssimo, fale-nos das dificuldades de construir uma carreira na literatura tendo que conviver com eventuais comparações.
• Luís Fernando Veríssimo: Minha carreira jornalística e depois literária foi meio acidental. Não tinha diploma de nada e custei um pouco a encontrar minha vocação. Não tinha a menor intenção de ser escritor e ser filho de um escritor conhecido talvez tenha algo a ver com isto. Mas quando comecei a escrever em jornal o fato de ter um sobrenome conhecido ajudou, claro. O que eu faço é diferente do que o meu pai fazia, não tem havido comparações. Pelo menos que eu saiba.

• Seu novo livro “Os Espiões” é um romance. É difícil para um cronista de ofício transitar com segurança entre um gênero ao outro?
• Luís Fernando Veríssimo: Na verdade, “Os espiões” é o meu sexto romance. Todos são curtos, acho que a relação com a crônica está aí. Eu comparo fazer crônica e romance com pilotar um veleiro e pilotar um transatlântico. Claro que é muito diferente, mas os princípios de navegação são os mesmos.

• O senhor acha que uma crônica de humor pode ser usada para “resolver” assuntos importantes de um país?
• Luís Fernando Veríssimo: Não, a crônica e o humor não resolvem nada. Podem chamar atenção para o que precisa ser resolvido, mas nunca serão mais do que palpites, bem humorados ou não. 

• Fale-nos de seu novo trabalho.
• Luís Fernando Veríssimo: Deve sair um novo livro de crônicas este ano, mas ainda não está nada definido.

• Constata-se que os filhos de brasileiros nascidos nos EUA estão se distanciando da língua dos pais. O senhor acha importante iniciativas como o “Minha Pátria, Minha Língua” que visam a preservação da diáspora brasileira no exterior? 
• Luís Fernando Veríssimo: Acho importante não tanto por razões patrióticas, embora seja recomendável manter um vínculo da criança com o país dos pais, mas porque dominar uma segunda língua será sempre benéfico para a garotada.

• O Brasil acaba de eleger sua primeira presidenta. O que isto representa para o povo do país?
• Luís Fernando Veríssimo: Não sei se o sexo do presidente faz muita diferença. Vale pela novidade e pelo fato de seguir uma tendência mundial de cada vez mais mulheres governando, mas a Dilma foi obviamente eleita pela popularidade e pela recomendação do Lula. Pelo que sei dela, é uma pessoa competente.

• O que significa para o senhor receber um prêmio pela vasta contribuição à cultura brasileira?
• Luís Fernando Veríssimo: Estou muito honrado, principalmente por entrar numa lista de premiados desse valor. Não sei se minha contribuição justifica o prêmio, mas não estou me queixando.

Fonte: Site Brazilian Voice (http://www.brazilianvoice.com)

A ROSA (Da série “Poesia numa hora destas?!”) - Estadão e Bom Dia (17/03/11)

Pétalas cobrindo pétalas
corredores secretos
circundando um vão...
A rosa não é uma flor,
a rosa é uma conspiração!


Tétrico trio e O nome - Crônicas dos jornais Estadão e Bom Dia (17/03/11)

Você imaginaria que uma nação traumatizada por dois ataques atômicos que mataram e mutilaram milhares dos seus cidadãos seria a última a recorrer a usinas nucleares para sua energia. Mas o Japão é um dos países (outro é a França) que aderiram com mais entusiasmo à tecnologia nuclear, desmentindo a velha máxima do gato escaldado e da água fria. 

Agora Fukushima, onde ainda não sabem se haverá uma grande tragédia ou apenas um grande susto, poderá se juntar a Hiroshima e Nagasaki num tétrico trio de lugares destruídos, com a diferença que em Hiroshima e Nagasaki a destruição veio do alto e no caso de Fukushima viria do chão e do mar, com o movimento das placas tectônicas substituindo os bombardeiros americanos e a fúria da natureza substituindo a fúria da guerra. 

Os japoneses alegam que o país não tem alternativas viáveis para produzir a energia de que necessita e que suas centrais nucleares são construídas para resistir aos previsíveis terremotos mas também já surgiram denúncias de falsificações de relatórios de segurança e outras falcatruas na administração das usinas, inclusive na de Fukushima. 

O que só prova que a estupidez humana é a mesma, seja pilotando um B-29 ou maquiando a ameaça do envenenamento por acidente de uma população.

O NOME  

Ajudaria a compreender melhor os acontecimentos no Oriente Médio se pelo menos a imprensa brasileira chegasse a um acordo sobre a grafia correta do nome do homem oscilante, mas ainda forte, da Líbia. Afinal, é Kadafi, Kadaffi, Kaddafi, Gadafi, Gadaffi, Gaddafi, Qaddafi, Qadaffi, Qadafi ou o que? 

Quanto ao seu primeiro nome, Muammar, parece não haver dúvida, se bem que haveria uma corrente propensa a eliminar um dos “emes” para não complicar a coisa, ou complicá-la ainda mais. Mas e o sobrenome? O da carteirinha do clube, o do CPF? Algum repórter mais empreendedor poderia tentar acessar a certidão de nascimento do, do, enfim, do cara, ou, se conseguisse se aproximar dele, perguntar como ele se chama e pedir “Soletra!”. 

Fora isso, proponho uma reunião dos jornais para padronizar o uso do nome do ditador, sob pena da situação ficar insustentável, levando à discórdia entre editores e revisores e à perplexidade entre leitores. Se não se chegar a uma grafia comum do nome se poderia adotar outro, de comum acordo. Como, por exemplo, sei lá. Souza.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Gramática e Veríssimo

A professora de Língua Portuguesa e Literatura, no município de Taquara, Rio Grande do Sul, Fabi Behling, tem um blog chamado Só atividades, que trabalha com atividades sobre a Língua Portuguesa.
O link para o blog é http://atividadeslinguaportuguesa.blogspot.com.
Nele há algumas atividades com textos do Veríssimo e colcarei algumas em meu blog, pois gramática e Veríssimo têm tudo a ver.

O diamante (Luís Fernando Veríssimo)
Atividade dada a alunos de 6º ano. Para dificultar um pouco a vida deles, desorganizei as letras de algumas palavras.

Um dia, Maria chegou em SCAA _________________ da OSLAEC __________ muito RESTIT____________.
- O que foi? - perguntou a mãe de Maria.
Mas Maria nem quis NSCAOEVR _________________.
Foi direto para o seu quarto, pegou o seu Snoopy e se atirou na cama, onde ficou DIDETAA ______________, BEMURRDAA________________.
A mãe de Maria foi ver se Maria estava com BEFRE ____________. Não estava. Perguntou se Maria estava sentindo alguma coisa. Não estava. Perguntou se estava com OFEM___________. Não estava. Perguntou o que era, então.
- Nada - disse Maria.
A mãe resolveu não STIRNISI ____________. Deixou Maria deitada na cama, abraçada com o seu Snoopy, emburrada. Quando o IAP _________ de Maria chegou em casa do RBALOTAH__________, a mãe de Maria avisou:
- Melhor nem falar com ela...
Maria estava com cara de PSCOUO________ SGMIOA__________. Pior, estava com cara de amigo nenhum.
Na mesa do jantar, Maria de repente falou:
- Eu não valo nada.
O pai de Maria disse:
- Em primeiro lugar, não se diz 'eu não valo nada'. É 'eu não valho nada'. Em segundo lugar, não é ERVDEDA_____________. Você valhe muito. Quer dizer, vale muito.
- Não valho.
- Mas o que é isso? - disse a mãe de Maria. - Você é a nossa filha ERUQDIA __________. Todos gostam de você. A mamãe, o papai, a vovó, os tios, as tias. Para nós, você é uma CSDAOPIRDEIE ________________.
Mas Maria não se convenceu. Disse que era igual a mil outras pessoas. A milhões de outras pessoas.
- Só na minha aula tem sete Marias.
- DIUEQRA ___________.. - começou a dizer a mãe. Mas o pai interrompeu.
- Maria, disse o pai, você sabe por que um diamante vale tanto INDEHRIO ____________?
- Porque é bonito.
- Porque é raro. Um EDPÇOA _________ de IDVRO___________ também é bonito. Mas o vidro se encontra em toda parte. Um MTIAEDAN ____________é difícil de encontrar. Quanto mais rara é uma coisa, mais ela vale. Você sabe por que o ouro vale tanto?
- Por quê?
- Porque tem pouquíssimo ouro no mundo. Se o ouro fosse como EIRAA ___________, a gente ia caminhar no ouro, ia rolar no ouro, depois ia chegar cm casa e lavar o ouro do POOCR __________ para não ficar suja. Agora, imagina se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro.
- Ia ser a coisa mais IALVSOA ____________ do mundo.
- Pois é. E em todo o mundo só existe uma Maria.
- São iguais a mim. Dois HOOLS ___________olhos, um AIZNR _____________...
- Mas esta IIANPTHN ____________ aqui nenhuma delas tem.
- É...
- Você já se deu conta que em todo NDUMO _____________ só existe uma você?
- Mas, pai...
- Só uma. Você é uma IRDDAERA _____________. Podem existir outras parecidas. Mas você, você mesmo, só existe uma. Se algum dia aparecer outra você na sua frente, você pode dizer: é AASLF ____________.
- Então eu sou a coisa mais valiosa do mundo.
- Olha, você deve estar valendo aí uns três LOSRTHIE ____________...
Naquela noite a mãe de Maria passou perto do TUAQRO ___________ dela e ouviu Maria falando com o Snoopy:
- Sabe um diamante?

VOCABULÁRIO
1) Reescreva as frases abaixo, substituindo a palavra sublinhada por um sinônimo. Faça as alterações necessárias.
a) "... se atirou na cama onde ficou deitada, emburrada."
b) "Mas o pai interrompeu..."
c) "Quanto mais rara é uma coisa..."
d) "...se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro..."

INTERPRETAÇÃO
1) Por que Maria estava chateada?
2) Como o pai de Maria a convenceu de que era especial?
3) Por que o título do texto é "Diamante"?
4) O que você acha que o autor quis dizer com a expressão "estava com cara de poucos amigos"?

Ed Mort e os nobres selvagens

   Mort. Ed Mort. Detetive Particular. É o que está escrito na plaqueta nova que mandei botar na minha porta. Roubaram a outra. Ocupo uma espécie de armário numa galeria de Copacabana, junto com um telefone mudo, 17 baratas e um ratão albino. Entre uma escola de cabeleireiros e uma loja de carimbos. A loja de carimbos, antes, era uma pastelaria. A pastelaria fechou depois de um desentendimento com a Prefeitura sobre a natureza de alguns ingredientes no recheio. Azeitonas pretas ou cocô de rato? Sei não. Foi depois que a pastelaria fechou que o ratão albino apareceu no meu escritório, e tinha um ar culpado. Eu o chamo de Voltaire, porque ele às vezes desaparece, mas sempre volta. Tenho leitura. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta.
   Eu estava construindo uma armadilha para baratas, com clips de papel e o catálogo telefônico de 1962, quando ela entrou. Era francesa. Vi pelo seu pé dentro da sandália. Conheço mulher pelo pé. Nacionalidade, estado civil, vida pregressa. Um truque que aprendi com um velho duque italiano que um dia apareceu morto na banheira do seu quarto do Copacabana Palace. Comido por piranhas. Um caso estranho. Vou contar tudo num livro, algum dia. Já comecei minha autobiografia várias vezes. Sem sucesso. Sempre conto tudo - do início humilde na Penha ao atual esplendor entre baratas - em menos de quatro páginas. Estas malditas frases curtas. Sucinto muito. Ela era francesa.
   - Quesquecé? - perguntei. Tenho leitura. Sem querer me jean gabin.
   Ela se surpreendeu. Era linda quando se surpreendia. Tinha um acento bonito, e isso que eu a estava vendo de frente. Chamava-se Mme Rousseau e procurava seu marido.
   - Jean-Jacques, eu presumo - disse eu.
   Olhei em volta para ver se as baratas e o ratão estavam acompanhando o diálogo. Já que não me abandonavam, que pelo menos me respeitassem. Ela respondeu:
   - Não. Jean-Paul.
   - Hmmm - disse eu, em francês.
   Jean-Paul e Mme Rosseau tinham vindo passar o carnaval no Rio. Ele era sociólogo. Ela era antropóloga. Desenvolviam uma tese sobre as civilizações tropicais.
    - Vous savez. A inocência do Novo Mundo. O último povo feliz. Etceterá.
   Acho que foi o etceterá. Me apaixonei. Pensei em convidá-la para ir até o meu apartamento. Medir o meu crânio, sei lá. Mas me contive. Ela era uma cliente e eu precisava de dinheiro. Estava há meses numa dieta de pedaço de pizza e Fanta uva. E meu apartamento era tão pequeno que para espirrar tinha que abrir a janela. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta.
   Onde ela vira o marido pela última vez? Fora na frente do Méredien, na terça-feira de carnaval. Passara um bloco, ao meio-dia, e Rousseau não se contivera. Saíra atrás do bloco, gritando para a mulher que o esperasse. Ela não procurara a polícia ou o consulado. Jean-Paul podia estar fazendo pesquisa. Uma vez desaparecera no Congo durante quatro anos e na volta ainda reclamara do atraso do jantar. Mme Rousseau estava acostumada. Mas...
   Completei a frase por ela:
   - Pour voi de les doutes...
   Ela pareceu não entender. Estava nervosa. Perguntei como era o bloco. Tinha um negrão na frente e quatro mulatas? Tinha. O negrão era barrigudo? Era. Camiseta do Vasco? Ela ficou confusa. Vascô? Uí, uí. Lista assim. La croix de Malte.
   Conferia. Eu sabia. Disse para ela esperar no hotel. O caso estaria resolvido antes que ela pudesse dizer zut, alors. Tomei nota do número do seu quarto. Mentalmente, porque roubaram o meu bloco de notas e a minha Bic.
   O golpe era antigo. Todos os carnavais o negrão Antecedentes - que ganhara o nome porque ao nascer já tinha ficha na polícia - formava o seu bloco. Passava pela frente dos hotéis em pleno abandono orgiástico (tenho leitura. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta). Quando o bloco voltava para a Prado Júnior, vinha cheio de turista atrás. Em confraternização com os nativos. Aí, os nativos faziam a limpa nos turistas. O negrão Antecedentes alegava inocência. Só estava brincando no carnaval, o que que há? Tinha culpa que os turistas se empolgavam?
   Encontrei Antecedentes no lugar de sempre. Um bar da Prado, O Condicional, porque lá só dá meliante solto. Ele estava destruindo uma coxa de galinha. Me encarou. Compreendi como a coxa de galinha se sentia. Perguntei pelo francês.
   - Que francês?
   - Um que saiu no bloco de vocês e até hoje não voltou. Ele gosta de carnaval mas não tanto. A mulher quer ele de volta, e com todas as peças.
   Antecedentes pensou um pouco. Engoliu a coxa de galinha e me considerou como sobremesa. Depois perguntou:
   - O que é que eu levo?
   - A metade que a dona me pagar.
  O francês estava num apartamento com as quatro mulatas. Pesquisa. Queria saber tudo sobre a inocência do Novo Mundo e pagava com travellers. Uma das mulatas estava contando que era filha de uma princesa índia com um jacaré, de olho na Lacoste do francês, quando eu entrei. Ele não gostou da interrupção. A muito custo consegui convencê-lo a pelo menos telefonar para a mulher.
  Meu trabalho estava feito. Como o francês emprega tudo na pesquisa, Mme Rousseau não tem com o que me pagar. O francês foi levado numa expedição ao Vidigal para investigar os hábitos da tribo de uma das mulatas, que pelo pé é gaúcha de Carazinho.
  Antecedentes já veio me ver. Quer a sua parte e não aceita desculpas. As baratas vibram. Voltaire me ignora. Mort. Ed Mort. Etceterá.

terça-feira, 15 de março de 2011

Romances: Borges e os Orangotangos Eternos (Companhia das Letras, 2000)

Escrito para uma série de policiais protagonizados por escritores famosos. Veríssimo radicaliza aqui os elementos dos livros anteriores: narrador/escritor, erudição, paródia das fórmulas de gênero. Nos anos 1940, Vogelstein, um apagado tradutor, conhece Jorge Luís Borges em um congresso em Buenos Aires sobre Edgar Allan Poe. Cruzando esses elementos que remetem por si sós à literatura de mistério, Veríssimo envolve Vogelstein em uma trama de assassinato e forças ocultas digna das publicadas na revista Mistério Magazine, da Editora Globo, de Porto Alegre, onde Vogelstein trabalha como tradutor de... Borges.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Antigas namoradas - Crônica do Bom Dia (13/03/11)


   – Gugu! – exclamou o Plínio.A mulher pensou: pronto.O Plínio ficou gagá. 

   – Como eu fui me esquecer dela? A minha primeira namorada. Maria Augusta. Gugu. Nós tínhamos doze anos. O primeiro beijo na boca.

  Depois veio a ... a ... Sulamita!

  – Você namorou uma Sulamita?!

  – Espera. Preciso fazer uma lista. Plínio saiu atrás de papel e caneta. Pronto, pensou a mulher. O Plínio encontrou uma ocupação.

  – Vamos ver. Sulamita. Primeiro beijo de língua. Primeira mão no peito. Mas só por fora. Ela não queria fazer mais nada. Meu Deus, as negociações! As intermináveis negociações. Deixa. Não deixo. Pega aqui. Eu não. Só um pouquinho. Não. Sexo, sexo mesmo, ou uma simulação razoável, foi só com a seguinte, que se chamava... Não. Antes do sexo teve um anjo. A Liselote. Loira, magra, alta. Pele de alabastro. O que é mesmo alabastro?

  – Não sei, acho que é uma espécie de...

  – Não importa. A pele da Liselote era de alabastro. Namoramos durante anos. Um dia fizemos um pacto suicida mas eu levei tanto tempo para escrever o bilhete que ela achou que era má vontade e o namoro acabou. Depois da Liselote, então, veio o sexo animal! Com a, a ... Como era o nome dela? Marina. Não, Regina. Cristina. Isso, Cristina. Ficamos noivos. Um um dia ela me viu descascando uma laranja e teve uma crise. Por alguma razão, o meu jeito de descascar uma laranja desencadeou uma crise. Ela disse que não podia se imaginar casada comigo, com alguém que descascava laranja daquele jeito. Mandaram ela para a Europa, para ver se ela se recuperava. Nem sei se foi laranja. Alguma coisa que eu fazia. Depois dela, deixa ver... Mercedes. A boliviana. Baixinha. Grandes seios. Vivia cantarolando. Não parava de cantarolar. Um dia eu reclamei e ela atirou um vaso na minha cabeça. Depois, depois...

  – Não teve uma Isis?

  – Isis! Claro. Eu falei da Isis pra você? Era corretora de móveis. Bem mais velha do que eu. Foi quem me ajudou a escolher o escritório. Não chegou a ser namoro. Fizemos sexo de pé em várias salas vazias da cidade, e ela nunca chegou a tirar o vestido. Grande Isis... Olha aí, até que não foram muitas... Ah, teve uma, eu já contei? Uma que miava quando a gente estava na cama. Miava! Me chamava de “Meu gatão”, toda melosa, e miava. Já pensou, o ridículo? Como era o nome dela?

  – Era eu, Plínio.

  – O quê? Não. O que é isso?

  – Não era não. Que absurdo. Nós, inclusive, não transamos antes de casar.

  – Transamos, namoramos, e eu miava porque você pedia. Era eu, Plínio. Bota o meu nome na sua lista.

  – Não. Nem sei por que eu comecei esta bobagem...

  – E quer saber de uma coisa? Não é o seu modo de descascar laranja, Plínio. É o seu modo de chupar laranja. A Cristina tinha razão. Não sei como eu aguentei todos estes anos. A Cristina tinha razão!

O GUIA (Da série Poesia numa Hora Destas?!) - Estadão (13/03/11)

Dante escolheu Virgílio para guiá-lo no mundo dos mortos.
Que poeta você escolheria para a mesma missão?
(Lembre-se que pela companhia o conhecerão...).
Homero, Ovídio, Petrarca ou alguém mais moderno
para explicar o Paraíso e o lascivo Inferno?
Os franceses, nem pensar:
Verlaine e Rimbaud iriam desmaiar
e Baudelaire aderiria
à divina baixaria.
Mas Drummond, por que não? Ou João Cabral?
Bandeira, Cecília... E o Quintana, que tal?
Yeats, Thomas, Pound ou Eliot, o T.S.
ou qualquer outro que se dispusesse.
Poetas não faltam, falta o poeta certo
para nos conduzir pelo Além sem sair de perto.
Eu já escolhi meu consorte
um que sabe tudo da vida e da morte
do amor, do ciúmes, do poder e da glória
dos terrores da alma e dos tremores da História.
Seu nome é Shakespeare, o bardo ilustríssimo.
Mas dizem que seu cachê é altíssimo...

Jane Russel - Crônica do Estadão (13/03/11)

A Jane Russel morreu na semana passada. Atriz americana. Morena. Bonita. Grandes seios. Entrou no cinema, por assim dizer, pelos seios. O excêntrico empresário e produtor de cinema Howard Hughes avistou seus seios na rua e decidiu contratá-los na hora. Os seios eram perfeitos mas Hughes achou que podia melhorar sua exposição. Ele desenhava aviões, tratou de inventar um soutien apropriadamente aerodinâmico para sustentar os seios da Jane Russel. Depois de meses de pesquisa o soutien ficou pronto e Jane e seus seios foram apresentados ao público. Seu primeiro filme, produzido e dirigido por Hughes, se chamava The Outlaw, o fora da lei. Foi uma sensação.
***
Um filme histórico. Não apenas pela franca exploração dos grandes seios da atriz, cujo decote dominava todos os cartazes, mas principalmente pela cena em que Jane Russel decide ajudar o fora da lei a se curar de uma tremedeira, não me lembro se causada por gripe, pneumonia ou tiro, e deita-se com ele na cama. Não acontece nada entre os dois, Jane só usa seu corpo para fins terapêuticos. Mas a ideia do calor daqueles grandes peitos reanimando o caubói prostrado causou escândalo, numa época em que nem casados podiam aparecer nos filmes ocupando a mesma cama. O filme de Hughes quase foi proibido. Ele teve que cortar cenas - presumivelmente de excesso de protuberância dos peitos pioneiros - para que fosse liberado.
***
Anos antes, outro filme tinha causado sensação porque o Clark Gable, despedindo-se calhordamente da Scarlett O"Hara em E o Vento Levou, dizia, referindo-se a seus problemas, "Frankly, my dear, I don"t give a damn". Em português inócuo "francamente, minha querida, eu não dou a mínima", mas no original a primeira vez que se ouviu no cinema a palavra "damn", maldição, uma profanidade, como "Deus", "Jesus"ou "inferno" usados como expletivos. Anos depois outro filme, acho que do Otto Preminger, também se tornou histórico porque nele uma personagem se declarava virgem. A não ser para descrever a mãe de Jesus - e desconfio que nem então - a palavra "virgem" nunca tinha sido dita num filme americano. Fui ver o filme quando ele saiu nos Estados Unidos em 1953 e lembro do murmúrio de risos abafados que percorreu a plateia na única vez em que a mocinha confessou sua condição.
***
Compare-se tudo isso com os seios nus que pululam, se este é o termo, e na palavra "fucking" usada como interjeição obrigatória em qualquer diálogo, no atual cinema americano.

João e Maria


   Esta é uma daquelas histórias que as pessoas juram que aconteceram, não faz muito, com um amigo delas. Há anos você ouve a mesma história, sempre com a garantia de que aconteceu mesmo. Há pouco, com um amigo. Nesta versão o amigo se chama João e a mulher se chama Maria, para simplificar.
   O João começou a desconfiar das constantes conversas da Maria com José, amigo do casal. Volta e meia o João pegava a Maria e o Zé cochichando, e quando se aproximava deles, eles paravam.
   - O que vocês dois tanto conversam?
   - Nada.
  Ou a Maria estava falando ao telefone e, quando o João chegava, dizia “Não posso agora” e desligava.
   - Quem era?
   - Ninguém.
  Não foi uma nem duas vezes. Durante semanas, o ninguém ligou muito. E um dia a Maria anunciou que precisava viajar. Sua vó Nica. No interior. Muito mal. Nas últimas. Precisava vê-la. Iria na sexta de manhã e voltaria no domingo.
   - Logo na sexta, Maria?
   - Por quê? Que que tem na sexta?
   - Nada.
   João telefonou para a sogra e perguntou como ia a vó Nica.
   - A mamãe? Deve estar bem. Foi com o grupo dela fazer compras no Paraguai.
   Maria só levou uma pequena sacola na viagem. Claro, pensou João. Só o que iria precisar, no hotel em que se encontraria com o Zé para um fim de semana de amor. No fim da tarde, só para confirmar, João telefonou do seu escritório para o escritório do Zé. Não, o seu José não estava. Tinha saído cedo e avisado que não voltaria. Muito bem, pensou João. Muito bem. Era assim que ela queria? Pois muito bem. Ele se vingaria. Levaria uma mulher para casa. Sim, para casa. Uma mulher, não. Duas. Fariam um maneger a troi, ou como quer que se chama aquilo - na cama do casal!
   Na boate, já bêbado, João perguntou para as duas mulheres, Vanessa e Gisele:
   - Sabem que dia é hoje?
   - Fala, filhote - disse a Vanessa.
   - O meu aniversário. E sabe que presente a minha mulher me deu?
   - O quê? (Gisele)
   - Cornos! E com o Zé. Com o Zé!
   - Sempre tem um Zé - filosofou a Vanessa.
   João desconfiara que uma das duas mulheres era um travesti, mas ao chegarem a casa, ele não se lembrava mais qual. Decretou que os três tirariam a roupa antes de entrar na casa. As mulheres toparam. Quando João conseguiu acertar o buraco da fechadura e abrir a porta, a Gisele tinha pulado nas suas costas e se pendurado no seu pescoço, e a Vanessa tentava pegar o seu pénis, e era assim que eles estavam quando as luzes da casa se acenderam e todos que estavam lá para a festa de aniversário que a Maria e o José tinham passado semanas planejando gritaram  “Surpresa!”.