Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Legítima e a Outra

   A Outra tanto fez que conseguiu entrar na UTI, onde encontrou a legítima agarrada à mão dele. Deitado de barriga para cima, com tubos e fios saindo para todos os lados e conectando-o à aparelhagem em volta, ele parecia um avião recém-pousado depois de uma longa viagem. Um Boeing com as turbinas apagadas, mantido vivo pelo pessoal da terra.
   - Querido! - gritou a Outra, procurando uma parte dele que também pudesse agarrar.
   A Legítima nem piscou.
   - O que você fez com ele? - exigiu a Outra.
   A Legítima nada.
   - Eu sabia que cedo ou tarde você o mataria. - acusou a Outra.
   A Legítima, uma pedra.
   - Só comigo ele tinha o carinho de que precisava. Você fez isso com ele! Você! Com sua frieza, com sua maldade, com sua...
   Então a Legítima falou:
   - Nós estávamos fazendo amor.
   A Outra recuou como se tivesse levado um choque.
   - Mentira!
   A enfermeira fez "sssh", mas a Outra falou ainda mais alto.
   - MENTIRA!
   - Ele morreu nos meus braços - disse a Legítima no mesmo tom triunfal.
   - Ele não está morto - corrigiu a enfremeira.
   - Morreu nos meus braços, está ouvindo?
   - Despeito! Despeito! Ele só fazia amor comigo.

   - Sabe quais foram as suas últimas palavras?
   A Outra tapou os ouvidos.
   - Eu não quero ouvir!
   - Suas últimas palavras foram "Agora cruza!".
   - Não!
   - Sim! Sim! Nós estávamos fazendo o Alicate!
   - NÃO!
   Um médico apareceu e ameaçou retirar as duas de perto do paciente. Elas não lhe deram atenção. A Outra soluçava.
   - Não, O Alicate não!
   - Sim! Tudo o que ele fazia com você, ele fazia em casa. Experimentava em você para fazer comigo.
   A Outra interrompeu os soluços para espiar por entre os dedos que tapavam seu rosto e perguntar, incrédula:
   - A Borboleta também?
   - A Borboleta, A Chinesa Assoviadora, o Baile dos Cossacos...
   - NÃO!
   - Sssshh!!
   - Tudo. Tudo! Você era um campo de provas. Eu era pra valer. Com você era treino. Comigo era pelos pontos!
   Então a Outra gritou uma palavra indecifrável e avançou num dos aparelhos que cercavam a cama, tentando arrancar os fios, até ser controlada pelo médico e a enfermeira e empurrada para fora do cubículo. Da porta a Outra ainda conseguiu gritar:
   - O Salgueiro Despencado ele não fazia com você!
   - Fazia! Fazia!
   Perfilada ao lado da cama, a Legítima respirou fundo. Depois, sentou-se. Ia pegar a mão dele, mas recuou. Em vez disso, cochichou no seu ouvido.
   - Joca?
   Insistiu:
   - Joca?
   Depois:
   - Como era o Salgueiro Despencado?
   Depois:
   - Seu safado. Como era o Salgueiro Despencado?
   E o Boeing quieto.

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