Na peça “A tempestade” de Shakespeare, Caliban é uma representação do que o selvagem significava para a imaginação europeia, quando se alastravam a exploração dos novos mundos e os encontros, ou choques, com seus habitantes primitivos. Metade gente e metade bicho, Caliban é uma curiosidade, uma ameaça, um estorvo e um desafio à classificação.
Muitos anos depois de Shakespeare, em pleno século dezenove, ainda se discutia na Europa se os selvagens eram humanos e tinham alma. Na peça ele é um servo rebelde e uma manifestação do Mal — quando não é um divertimento para Próspero e os outros. E era assim que ele existia no pensamento europeu: como um estranho, um possível escravo, uma possível fera e um eventual espetáculo. Mas Caliban tinha uma coisa que nenhum outro da sua raça — fosse ela qual fosse — tinha: suas falas eram escritas por Shakespeare.
É do seu autor a frase em que Caliban diz a Próspero que este lhe ensinou a falar como um homem, e que seu lucro nisso foi que aprendeu a praguejar. Substitua-se “praguejar” por protestar, denunciar, reivindicar e temos em Caliban o primeiro contestador de impérios coloniais, o primeiro nativo a falar de igual para igual com o senhor branco, o primeiro a rogar pragas contra a sua situação e a pedir justiça. E a usar o vocabulário do dominador contra ele próprio.
A Europa hoje enfrenta imigrantes que chegam aos borbotões na busca do seu direito a sobreviver, fugindo de ex-colônias deflagradas onde não há futuro. A falta de cadência shakespeariana às suas razões é suprida pela linguagem do desespero, mas o que os move é o mesmo vocabulário que Caliban tomou de Próspero para rejeitar um destino que o condenava a ser sub-humano.
Os “selvagens” aprenderam a praguejar, o que agora significa contrariar a fatalidade de terem nascido no lugar errado, e na forma errada. Se fossem dinheiro, emigrariam para onde quisessem, para onde houvesse oportunidades, em impulsos eletrônicos. Como são gente...