Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Ed Mort e os nobres selvagens

   Mort. Ed Mort. Detetive Particular. É o que está escrito na plaqueta nova que mandei botar na minha porta. Roubaram a outra. Ocupo uma espécie de armário numa galeria de Copacabana, junto com um telefone mudo, 17 baratas e um ratão albino. Entre uma escola de cabeleireiros e uma loja de carimbos. A loja de carimbos, antes, era uma pastelaria. A pastelaria fechou depois de um desentendimento com a Prefeitura sobre a natureza de alguns ingredientes no recheio. Azeitonas pretas ou cocô de rato? Sei não. Foi depois que a pastelaria fechou que o ratão albino apareceu no meu escritório, e tinha um ar culpado. Eu o chamo de Voltaire, porque ele às vezes desaparece, mas sempre volta. Tenho leitura. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta.
   Eu estava construindo uma armadilha para baratas, com clips de papel e o catálogo telefônico de 1962, quando ela entrou. Era francesa. Vi pelo seu pé dentro da sandália. Conheço mulher pelo pé. Nacionalidade, estado civil, vida pregressa. Um truque que aprendi com um velho duque italiano que um dia apareceu morto na banheira do seu quarto do Copacabana Palace. Comido por piranhas. Um caso estranho. Vou contar tudo num livro, algum dia. Já comecei minha autobiografia várias vezes. Sem sucesso. Sempre conto tudo - do início humilde na Penha ao atual esplendor entre baratas - em menos de quatro páginas. Estas malditas frases curtas. Sucinto muito. Ela era francesa.
   - Quesquecé? - perguntei. Tenho leitura. Sem querer me jean gabin.
   Ela se surpreendeu. Era linda quando se surpreendia. Tinha um acento bonito, e isso que eu a estava vendo de frente. Chamava-se Mme Rousseau e procurava seu marido.
   - Jean-Jacques, eu presumo - disse eu.
   Olhei em volta para ver se as baratas e o ratão estavam acompanhando o diálogo. Já que não me abandonavam, que pelo menos me respeitassem. Ela respondeu:
   - Não. Jean-Paul.
   - Hmmm - disse eu, em francês.
   Jean-Paul e Mme Rosseau tinham vindo passar o carnaval no Rio. Ele era sociólogo. Ela era antropóloga. Desenvolviam uma tese sobre as civilizações tropicais.
    - Vous savez. A inocência do Novo Mundo. O último povo feliz. Etceterá.
   Acho que foi o etceterá. Me apaixonei. Pensei em convidá-la para ir até o meu apartamento. Medir o meu crânio, sei lá. Mas me contive. Ela era uma cliente e eu precisava de dinheiro. Estava há meses numa dieta de pedaço de pizza e Fanta uva. E meu apartamento era tão pequeno que para espirrar tinha que abrir a janela. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta.
   Onde ela vira o marido pela última vez? Fora na frente do Méredien, na terça-feira de carnaval. Passara um bloco, ao meio-dia, e Rousseau não se contivera. Saíra atrás do bloco, gritando para a mulher que o esperasse. Ela não procurara a polícia ou o consulado. Jean-Paul podia estar fazendo pesquisa. Uma vez desaparecera no Congo durante quatro anos e na volta ainda reclamara do atraso do jantar. Mme Rousseau estava acostumada. Mas...
   Completei a frase por ela:
   - Pour voi de les doutes...
   Ela pareceu não entender. Estava nervosa. Perguntei como era o bloco. Tinha um negrão na frente e quatro mulatas? Tinha. O negrão era barrigudo? Era. Camiseta do Vasco? Ela ficou confusa. Vascô? Uí, uí. Lista assim. La croix de Malte.
   Conferia. Eu sabia. Disse para ela esperar no hotel. O caso estaria resolvido antes que ela pudesse dizer zut, alors. Tomei nota do número do seu quarto. Mentalmente, porque roubaram o meu bloco de notas e a minha Bic.
   O golpe era antigo. Todos os carnavais o negrão Antecedentes - que ganhara o nome porque ao nascer já tinha ficha na polícia - formava o seu bloco. Passava pela frente dos hotéis em pleno abandono orgiástico (tenho leitura. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta). Quando o bloco voltava para a Prado Júnior, vinha cheio de turista atrás. Em confraternização com os nativos. Aí, os nativos faziam a limpa nos turistas. O negrão Antecedentes alegava inocência. Só estava brincando no carnaval, o que que há? Tinha culpa que os turistas se empolgavam?
   Encontrei Antecedentes no lugar de sempre. Um bar da Prado, O Condicional, porque lá só dá meliante solto. Ele estava destruindo uma coxa de galinha. Me encarou. Compreendi como a coxa de galinha se sentia. Perguntei pelo francês.
   - Que francês?
   - Um que saiu no bloco de vocês e até hoje não voltou. Ele gosta de carnaval mas não tanto. A mulher quer ele de volta, e com todas as peças.
   Antecedentes pensou um pouco. Engoliu a coxa de galinha e me considerou como sobremesa. Depois perguntou:
   - O que é que eu levo?
   - A metade que a dona me pagar.
  O francês estava num apartamento com as quatro mulatas. Pesquisa. Queria saber tudo sobre a inocência do Novo Mundo e pagava com travellers. Uma das mulatas estava contando que era filha de uma princesa índia com um jacaré, de olho na Lacoste do francês, quando eu entrei. Ele não gostou da interrupção. A muito custo consegui convencê-lo a pelo menos telefonar para a mulher.
  Meu trabalho estava feito. Como o francês emprega tudo na pesquisa, Mme Rousseau não tem com o que me pagar. O francês foi levado numa expedição ao Vidigal para investigar os hábitos da tribo de uma das mulatas, que pelo pé é gaúcha de Carazinho.
  Antecedentes já veio me ver. Quer a sua parte e não aceita desculpas. As baratas vibram. Voltaire me ignora. Mort. Ed Mort. Etceterá.

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