Quem dentre vós nunca sonhou em criar o seu próprio agente secreto inglês que atire o primeiro James Bond. Certa vez, pensei em inventar um superagente brasileiro, Jaime Alguma Coisa, e escrever suas aventuras no mundo da intriga internacional, mas não deu certo. Por alguma razão, sempre que eu começava a descrevê-lo, saía um tipo magro, baixo, orelhudo, de bigodinho, o único no departamento a torcer pelo América, e que enjoava em avião. Sua classificação de 00664853 barra 7 lhe permitia andar armado, virar a gola do seu impermeável para cima e fazer um lanche por dia à custa do departamento, com comprovante. Na primeira página da primeira aventura que imaginei para ele, o chefe da espionagem, seu superior, examina o dossiê de um caso dificílimo que tem à sua frente, morde a haste do cachimbo e decide: “Este é um caso para o Jaimito”. Parei aí mesmo. Nada de muito sério ― e certamente não aquele caso de espionagem atômica, envolvendo a própria sobrevivência do país, além de dezessete anões iugoslavos e uma falsa condessa ― podia ser confiado ao Jaimito. Além disso, a sua arma secreta, um isqueiro com sessenta e quatro utilidades diferentes, todas mortíferas, falhava até para acender cigarro. Desisti do Jaimito. Agente secreto inglês tem que ser inglês. Como este que acabei de criar.
Peter Vest-Pocket encurtou a Segunda Guerra Mundial em oito meses (“e três dias”, acrescenta ele, com característica atenção ao detalhe), quando decifrou para os Aliados os códigos do Alto-Comando alemão ― embora tivesse só cinco anos incompletos na ocasião. Seu sorriso enigmático foi responsável por dez tentativas de suicídio em todo o mundo, nove mulheres e um bailarino russo que engoliu a própria sapatilha. É a maior autoridade mundial em peixes tropicais, manuscritos medievais da Europa Central e a vida de Mae West. Suplementa o seu salário do governo jogando pôquer, no qual desenvolveu um método infalível para ganhar sempre: trapaceia.
Foi no famoso salão cor-de-vômito, o Puke Room do Harbinger’s em Londres, onde você só entra apresentando ao porteiro uma nota assinada pelo Secretário do Tesouro da Inglaterra, de preferência de mil libras, que Vest-Pocket viu-se, certa noite, frente a frente com o único homem no mundo que temia: o Barão Guy de la Recherche. Na mesa, estavam ainda um gordo ex-ministro venezuelano que suava muito, um Emir árabe com óculos tão escuros que precisava de um secretário para lhe dizer que cartas tinha na mão e o rei das batatas chips dos Estados Unidos. Mas Vest-Pocket os ignorou. Seu adversário era de la Recherche.
Recostado na cadeira com a mão direita erguida ao lado do rosto, segurando um dos charutos que Fidel lhe mandava semanalmente com aborrecidos bilhetes cheios de admiração juvenil, Vest-Pocket jogava displicentemente com a mão esquerda. Só variava a posição quando dava as cartas e aí prendia o charuto entre os dentes e usava as duas mãos para embaralhar, servir a mesa e tirar cartas da manga quando a situação o exigisse. Periodicamente, levava à boca um copo de aguardente feito especialmente para ele, na Bolívia, com a saliva de jovens índias que mascavam a raiz sagrada do peiote ― e duas gotas de Beneditino.
Às quatro horas da madrugada, tendo mantido o jogo razoavelmente equilibrado até ali para não espantar ninguém, Vest-Pocket viu a sua chance. O barão, que sempre passava um dedo pelo seu afilado nariz quando tinha um bom jogo nas mãos, esfregava o nariz como nunca. E o secretário que lia as cartas para o Emir acabara de segredar alguma coisa no ouvido do seu mestre que o fizera sorrir, quase imperceptivelmente. O venezuelano e o americano estavam de fora. Chegara a hora. Tudo dependia daquela jogada. Vest-Pocket dava as cartas.
O barão não quis cartas. O emir pediu uma, que obviamente o agradou. Peter descartou duas e tirou da manga as duas que faltavam para o seu royal street flush.
O emir não tinha fichas suficientes para apostar e colocou na mesa um cheque de cem mil libras.
“Suas cem”, disse o Barão, tirando um livro de cheques do bolso, “e mais cem.”
“As suas duzentas”, disse Peter, “e mais quatrocentas.”
“As suas seiscentas”, disse o emir, “e mais o número da minha conta na Suíça e uma autorização para sacar tudo ...”
“Não aceitamos hipóteses, queremos cifras”, disse Peter, com tamanha autoridade que o emir não disse outra palavra. “Barão?”
“As suas seiscentas...” começou o barão, “e o que você quiser, meu amigo. Minha propriedade no Loire? A minha ilha nas Caraíbas? Meus cavalos na Argentina? Diga você.”
“Quero a sua receita de mousse de salmão.”
“O quê? Impossível. É um segredo de família. Ninguém mais a conhece. O meu prato supremo.”
Exatamente, pensou Peter Vest-Pocket. Enquanto o Barão de la Recherche detivesse o segredo daquela mousse de salmão, ele, Peter, não podia se considerar o melhor cozinheiro amador do mundo. Com a receita da mousse de salmão, ele seria imbatível. Não precisaria mais temer a reputação de ninguém. Sem tirar os olhos dos olhos do Barão, Peter falou:
“Aumente a parada, pague para ver ou silencie para sempre. Se eu ganhar, quero a receita da mousse dentro de quarenta e oito horas, pois pretendo receber algumas pessoas para jantar.”
(Ao leitor decepcionado com a falta de ação, violência e intriga internacionaldezessete anões iugoslavos e seus exóticos métodos de matar o inimigo a cócegas entram depois.)
0 comentários:
Postar um comentário