Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

sábado, 5 de março de 2011

A aposta do barão

   Quem dentre vós nunca sonhou em criar o seu próprio agente secreto inglês que atire o primeiro James Bond. Certa vez, pensei em inventar um superagente brasileiro, Jaime Alguma Coisa, e escrever suas aventuras no mundo da intriga internacional, mas não deu certo. Por alguma razão, sempre que eu começava a descrevê-lo, saía um tipo magro, baixo, orelhudo, de bigodinho, o único no departamento a torcer pelo América, e que enjoava em avião. Sua classificação de 00664853 barra 7 lhe permitia andar armado, virar a gola do seu impermeável para cima e fazer um lanche por dia à custa do departamento, com comprovante. Na primeira página da primeira aventura que imaginei para ele, o chefe da espionagem, seu superior, examina o dossiê de um caso dificílimo que tem à sua frente, morde a haste do cachimbo e decide: “Este é um caso para o Jaimito”. Parei aí mesmo. Nada de muito sério ― e certamente não aquele caso de espionagem atômica, envolvendo a própria sobrevivência do país, além de dezessete anões iugoslavos e uma falsa condessa ― podia ser confiado ao Jaimito. Além disso, a sua arma secreta, um isqueiro com sessenta e quatro utilidades diferentes, todas mortíferas, falhava até para acender cigarro. Desisti do Jaimito. Agente secreto inglês tem que ser inglês. Como este que acabei de criar.
   Peter Vest-Pocket encurtou a Segunda Guerra Mundial em oito meses (“e três dias”, acrescenta ele, com característica atenção ao detalhe), quando decifrou para os Aliados os códigos do Alto-Comando alemão ― embora tivesse só cinco anos incompletos na ocasião. Seu sorriso enigmático foi responsável por dez tentativas de suicídio em todo o mundo, nove mulheres e um bailarino russo que engoliu a própria sapatilha. É a maior autoridade mundial em peixes tropicais, manuscritos medievais da Europa Central e a vida de Mae West. Suplementa o seu salário do governo jogando pôquer, no qual desenvolveu um método infalível para ganhar sempre: trapaceia.
   Foi no famoso salão cor-de-vômito, o Puke Room do Harbinger’s em Londres, onde você só entra apresentando ao porteiro uma nota assinada pelo Secretário do Tesouro da Inglaterra, de preferência de mil libras, que Vest-Pocket viu-se, certa noite, frente a frente com o único homem no mundo que temia: o Barão Guy de la Recherche. Na mesa, estavam ainda um gordo ex-ministro venezuelano que suava muito, um Emir árabe com óculos tão escuros que precisava de um secretário para lhe dizer que cartas tinha na mão e o rei das batatas chips dos Estados Unidos. Mas Vest-Pocket os ignorou. Seu adversário era de la Recherche.
   Recostado na cadeira com a mão direita erguida ao lado do rosto, segurando um dos charutos que Fidel lhe mandava semanalmente com aborrecidos bilhetes cheios de admiração juvenil, Vest-Pocket jogava displicentemente com a mão esquerda. Só variava a posição quando dava as cartas e aí prendia o charuto entre os dentes e usava as duas mãos para embaralhar, servir a mesa e tirar cartas da manga quando a situação o exigisse. Periodicamente, levava à boca um copo de aguardente feito especialmente para ele, na Bolívia, com a saliva de jovens índias que mascavam a raiz sagrada do peiote ― e duas gotas de Beneditino.
   Às quatro horas da madrugada, tendo mantido o jogo razoavelmente equilibrado até ali para não espantar ninguém, Vest-Pocket viu a sua chance. O barão, que sempre passava um dedo pelo seu afilado nariz quando tinha um bom jogo nas mãos, esfregava o nariz como nunca. E o secretário que lia as cartas para o Emir acabara de segredar alguma coisa no ouvido do seu mestre que o fizera sorrir, quase imperceptivelmente. O venezuelano e o americano estavam de fora. Chegara a hora. Tudo dependia daquela jogada. Vest-Pocket dava as cartas.
   O barão não quis cartas. O emir pediu uma, que obviamente o agradou. Peter descartou duas e tirou da manga as duas que faltavam para o seu royal street flush.
   O emir não tinha fichas suficientes para apostar e colocou na mesa um cheque de cem mil libras.
   “Suas cem”, disse o Barão, tirando um livro de cheques do bolso, “e mais cem.” 
   “As suas duzentas”, disse Peter, “e mais quatrocentas.”
   “As suas seiscentas”, disse o emir, “e mais o número da minha conta na Suíça e uma autorização para sacar tudo ...”
   “Não aceitamos hipóteses, queremos cifras”, disse Peter, com tamanha autoridade que o emir não disse outra palavra. “Barão?”
   “As suas seiscentas...” começou o barão, “e o que você quiser, meu amigo. Minha propriedade no Loire? A minha ilha nas Caraíbas? Meus cavalos na Argentina? Diga você.”
   “Quero a sua receita de mousse de salmão.”
   “O quê? Impossível. É um segredo de família. Ninguém mais a conhece. O meu prato supremo.”
   Exatamente, pensou Peter Vest-Pocket. Enquanto o Barão de la Recherche detivesse o segredo daquela mousse de salmão, ele, Peter, não podia se considerar o melhor cozinheiro amador do mundo. Com a receita da mousse de salmão, ele seria imbatível. Não precisaria mais temer a reputação de ninguém. Sem tirar os olhos dos olhos do Barão, Peter falou:
   “Aumente a parada, pague para ver ou silencie para sempre. Se eu ganhar, quero a receita da mousse dentro de quarenta e oito horas, pois pretendo receber algumas pessoas para jantar.”
   (Ao leitor decepcionado com a falta de ação, violência e intriga internacionaldezessete anões iugoslavos e seus exóticos métodos de matar o inimigo a cócegas entram depois.)

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